Lembro de quando meus primos mataram um sapo a pedradas em Anhanguera. Éramos todos bichos, mas só o sapo sabia. Pior que matá-lo foi quando os meninos desistimos da brincadeira e, cansados, resolveu-se deixar o sapo para trás. Era mais um se virando com suas feridas. Não sujei minhas mãos naquele dia. Eu preferia matar os tantos mandruvás que coexistiam nos corredores de minha velha casa na rua da Glória, 92. Eu era um pequeno entre eles. Senti graça nas risadas dos primos e senti medo pelo sapo. A cena não fazia sentido no meu corpo magro e bronzeado pelo sol do verão. Por que tantas pedras se ele não fazia nada contra nós? Os mandruvás ao menos exigiam suas entradas pelos vitrôs do meu quarto e não, isso eu não ia permitir, me deparar com um mandruvá pelo chão da casa ou em cima da minha cama. Queimando-me na surpresa de calçar sapatos. Desculpas. E hoje vejo nosso homicídio culposo que tanto gosto tinha em matar mandruvás, sapos e formigas.
Lembro de quando meus primos mataram um sapo a pedradas em Anhanguera. Lembro enquanto D. conta a sua história de crueldade de um professor contra um aluno. Era para olhar para a crueldade enquanto se ouvia a história. Mas eu sempre tive dificuldade pelo todo. É isso. Foi a própria D. que me fez ver isso, nessa mesma noite entre histórias e chuvas espaçadas. Eu só consigo apreender detalhes, coisas muito focalizadas, um traço em todo o sujeito. Um pouco especialista nômade. Quando aprendia de sujeitos, esquecia de verbos. Esqueço nomes de autores que li e gostei muito. E quantas músicas que só cantarei com espaços em branco. Enfim. Quando. Quando D. me contou a história da crueldade, pensei: e por que ninguém fez nada? Ninguém salvou o colega de uma quase morte diante da cena montada pelo professor? Ah, estávamos todos chocados. E o dia seguinte? Há sempre o dia seguinte depois da morte, o minuto posterior ao choque e, acredite, elaborações simultâneas ao fracasso. Eu a deixei conversando só e resolvi me recolher. Falei demais essa noite, cobrei dívidas, tenho cada vez menor paciência para cenas bêbadas. Toda vez D. gaguejando, fazendo puxadinhos de rodapés, construindo explicações históricas para o sempre depois.
Isso tudo aqui nunca deve ser lido. Ou eu magoaria demais os que amo. Mas não
consigo bancar toda essa memória e exponho por uma bagatela o grande drama de nossas vidas.
Foi assim que eu deixei o sapo morrer, sem culpa nenhuma, exceto a de existir, diante dos meus próprios olhos. Deixei. Estava em choque. Quantos anos eu tinha? 6? 7? 8? E nada disso serve como álibi. Quando, aos 30, D. me conta que nunca, nunca mais seu colega voltou ao curso, eu só consegui ficar pensando nos mendigos que eu via na Carlos Gomes. Eu os conheci mais de perto, penso que os defenderia se os visse sendo apedrejados por pessoas povoadas do espírito que naquele dia nos habitou, meus primos. E se eu não tivesse nunca feito amizade com um Edson ou um Coroa? Tomara, creio eu, que tivesse peito aberto para a acareação severa que naquela tarde linda em Anhanguera não tive. Aos 30, não poderei ser perdoada por nada. Nem agora, aos 22. Está tudo ficando manjado. Já saquei que D. nunca ia falar, nunca falaria, não falou. Ficamos em choque, a turma toda ficou. Eu sempre temi as turmas mesmo quando queria disfarçar a minha integração com as mesmas. Essas turmas não têm muito a ver com a coletividade. Estão a serviço de outra coisa. Pode ser que um galo ou outro resolva saracutiar por aí, cantando torto em relação aos demais. Foi o que faltou na turma de D., um galo torto, como desses que ouvi essa madrugada. Indo juntos, gritando quase sem voz, gritando na raça. Não eram como essas turmas, como nós, os primos, alunos e professores.
E chega de falar dessas raças desgraçadas.
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