BLUES E SOUSA
É triste. Mas os sentimentos são históricos.
Vê lá se o amor romântico homem-mulher, tal como o Ocidente o concebe, o idílio-namoro-paixão, não é uma invenção dos poetas trovadores da Provença Medieval, flor das cortes condais e baronais do sul da França. Sentimentos são padrões. Podem entrar na moda. E marcar épocas, momentos e circunstâncias históricas.
Por isso, sentimentos podem ter um nome.
Quero falar de quatro sentimentos, quatro feelings, historicamente datados e localizados. Sabishisa. Spleen. "Banzo". E blues.
A experiência sino-japonesa do zen consistia (consiste) na obtenção de um "estado". Um status espiritual?
Entre os componentes desse estado zen, os entendidos costumam incluir um feeling de sabishisa. Sabishi, em japonês, quer dizer, mais ou menos, "tristeza". Sabishisa é tristeza. Essa "tristeza" é uma condição de abatimento emocional diante das coisas e dos fluxos dos eventos: a tristeza de quem sabe que as coisas passam, nada dura e tudo é fluxo, metamorfose e impermanência, heraclitano fundamento do budismo em geral.
Sabishisa, para os poetas japoneses de haicai, é uma condição para a produção do haicai.
É o equivalente, no haicai, do conceito de Mu (= não), no zen, "um estado de absoluta pobreza espiritual, na qual, não tendo nada, somos donos de tudo" (Blyth).
Sabishisa é, também, um estado de interpenetração com todas as outras coisas. Uki-ga, "o eu flutuante", essa sensação mais constante [do] pai do haicai japonês, Bashê, o seu "estado comum de tristeza solitária".
Essa sabishisa não é incompatível com o júbilo, a alegria profunda, o prazer de viver e o amor pelos outros: é uma "qualidade" budista, perpassando todas as vivências. E lhes dando uma cor própria.
Spleen, em inglês, é outra dessas palavras que designam sentimentos próprios de uma época.
Significando, em inglês, "baço", spleen era indisposição, indefinível sentimento de tédio diante da vida, explicável, à luz da medicina de Hipócrates, que atribuía ao mau humor uma disfunção do baço.
No século XIX, durante a vigência do Romantismo, por influência de Byron e outros românticos ingleses, o spleen se espraiou por toda a Europa.
O francês Baudelaire, um dos pais do Simbolismo, sentia muito spleen. Versos são muito contagiosos. Assim, o brasileiro Álvares de Azevedo também viveu muito "spleenético", em sua curta vida, depois que leu Byron.
Ter spleen era uma moda, no século passado (o próprio Cruz [e Souza] fala em spleen).
No fundo, o spleen não era mais que o subproduto do ócio das classes dominantes, que dispunham de todo o seu tempo, para não ter nada que fazer, no compacto tempo útil da civilização insdustrial que, então, começava. Restos desse spleen se espalham sobre a náusea de Sartre e a noia do cineasta Antonioni, que explorou ad nauseam, em L'Avventura, La Notte e L'Eclisse, os clássicos cinematográficos desse feeling.
A inutilidade social e produtiva das classes dominantes encontrou sua tradução na in-utilidade do trabalho dos artistas: Proust e outros, que morreram de spleen.
Bem, outro foi o caso do banzo, sentimento, historicamente situado, dos negros brasileiros, submetidos ao estatuto da escravidão.
Quando um negro "banzava", ele parava de trabalhar, nenhuma tortura[,] chicote, ferro em brasa, o fazia se mover. Ele ficava ali, sentado, "banzando", "banzando". Vinha o desejo de comer terra. E, comendo terra, voltar para a África, através da morte. Um negro, com banzo, era uma peça perdida.
Parece que "banzar" é uma versão africana do verbo português "pensar". "Pensar", para o negro afro-brasileiro, era "banzar"; ficar triste, triste de morrer. Uma tristeza que era a mesma coisa que se matar.
Em que se distingue esse sentimento daquilo que se entende por blues? Porque blues, antes de ser um gênero musical, é um modo de sentir do negro norte-americano. Ou americano?
"Quando alguém passa a noite inteira sem poder dormir, que é que aconteceu? Tá com blues. Vamos que você tenha mãe, pai, irmão, irmã e namorada. Nenhum deles lhe fez nada. No entanto, você não quer falar com eles. O que é que acontece? Você tá com blues. Negros sempre estão com blues" (um negro norte-americano).
Será que blues quer dizer "bronca"? "Mágoa"? "Estranheza"? O fato é que o blues (sentimento) produziu uma das modalidades musicais mais poderos[a]s [do] século [passado]. Basta dizer que todo o rock-and-roll deriva, diretamente, de blues e suas variantes (rhythm-and-blues, etc.), trazidas para um repertório branco e comercializadas (Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones).
Musicalmente, tudo resultou de um cruzamento entre a musicalidade natural do negro e o contato com a parafernália instrumental branca.
O próprio jazz resultou da oportunidade que os negros tiveram de conseguir e usar, à sua maneira, os instrumentos de origem europeia. Isso se deu, de modo especial, em New Orleans, nos Estados Unidos, ponte de conjunção de várias culturas, francesa, anglo-saxã-africana.
Isso que se entende como blues, gênero musical, não tem data de nascimento: parece se confundir com a própria expressão do sentimento do primeiro negro trazido para a América como escravo.
Quem saberia ouvi-la nos spirituals, cantos corais das igrejas batistas, anabatistas e presbiterianas da Nova Inglaterra? Ou nas work-songs, canções de trabalho dos negros submetidos à alvamente irônica monocultura do algodão no Sul dos Estados Unidos? Ou nos shouts, dos negros loucos berradores, em cabanas à beira do Mississipi, esperando passar o próximo barco, cassino de rodas a vapor, shouting entre sapos, lagartos e outros seres estranhos do pantanal?
Tem blues nas canções anônimas da anômala fauna de New Orleans, putas, seus gigolôs, drogados, ex-penitenciários, homossexuais, crupiês, marginais, mais que isso, negros marginais, destinos cortados, restos de vida, párias do mundo.
"Big" Bill Broonzy. Lead-Belly. T-Bone Walker.
As grandes damas: Bessie Smith (atropelada, em pleno delirium tremens de gim, não foi socorrida no hospital a que foi levada porque era negra). E essa suprema Billie Holliday, "Lady Day", que soube tirar tudo que o som tem de dor.
"Que céu, que inferno, que profundo inferno,
que outros, que azuis, que lágrimas, que risos,
quanto magoado sentimento eterno
nesses ritmos trêmulos e indecisos..."
(Cruz e Sousa, Violões que Choram)
Uma das palavras favoritas de Mallarmé, de um dos pais do simbolismo, era "azul", "l'azur". "Blue", azul. Blues, uma música azul, chamada tristeza.
(Paulo Leminski, Cruz e Sousa)
3 comments:
Azul é a cor que
enfeita a minha
tristeza.
Enquanto meu spleen não vira sabishisa... Cultivo o blues. Quando bem dosado é como carregar uma "angústia calma" e às vezes cai bem com cerveja ou música do Joy Division. Que o que chamamos de amor é uma invenção de poetas trovadores pra mim faz grande diferença, pois, como romântico, devo constatar que esse sentimento não tem uma “essência”. O ódio deve ter mais essência.
Oi, Ana Lígia!
Obrigada deveras pela generosidade de compartilhar esse texto. "Sabishisa", "spleen", "banzo" e "blues" sugerem um mesmo sentimento - a tristeza: sentimento universal, mas nem por isso constante; ao contrário, ele se transforma, pulsa e dança na cadência da história! Brilhante o texto, o qual me conduziu a um outro: "Rock, o grito e o mito" (Roberto Muggiati), cuja ideia essencial é demonstrar que pr'além de um gênero estanque, o rock é muito mais uma mistura de sentimentos, atitudes e técnicas europeias, americanas e africanas:
"O rock nasceu de um grito, o primeiro grito do escravo negro ao pisar em sua nova terra, a América. Esses berros de estranha entonação eram atividade expressiva comum entre os nativos da África Ocidental. O primeiro grito negro cortou os céus americanos como uma espécie de sonar, talvez a única maneira de fazer o reconhecimento do ambiente novo e hostil que o cercava. À medida que o escravo afundava na cultura local – representada, no plano musical, pela tradição européia – o grito ia se alterando, assumia novas formas. Servia de suporte às canções de trabalho e às cantigas de escárnio, aos cânticos religiosos, a spirituals, a gospel-songs e às canções de menestréis. Em torno do berro iam se acumulando novos sistemas sonoros, mas ele permanecia a estrutura primeira, o núcleo de expressão musical negra..."
Ah... aproveitando que o assunto é música, deixo pra você uma música-poesia metalinguística: "Is that jazz?", by Gil Scott-Heron. Impressionantes: saxofones, a postura da banda, a elegância do Gil. Se não conhece, só pra ter dimensão da beleza, olha esses versos: "Ellington was more than number one / For the music and things that he said..."
http://www.youtube.com/watch?v=SOBVa6Gg6PA&feature=share
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