Monday, April 27, 2009

revival

A cena é antiga e se passa em 1989. À época, eu tinha oito anos e me recordo da professora Sônia perguntando, aluno por aluno, em quem nossos pais iriam votar. Cada um respondia de boca cheia nomes como Fernando Collor e Afif Domingos, dois fortes candidatos da época. Era um colégio católico de pequenos burgueses que hoje se encontra em processo de decadência, devido aos grandes mercados escolares com os quais teve de aprender a competir e, de alguma forma, a perder para estes. Foi lá onde fiz toda minha formação de ensino básico e fundamental, do pré até a 8ª série. Filha de pai espírita e mãe presbiteriana, o ensino católico propiciava um discurso que surgia sempre sob o estatuto da verdade, sendo preciso que minha mãe, muitas vezes, contemporizasse os fatos históricos na minha cabeça, vez que eu, com freqüência, sentia-me extremamente irritada por não poder fazer o sinal da cruz, comer o corpo de Cristo e participar das reuniões de primeira comunhão. Como se não bastasse, eu e minha irmã menor éramos as únicas presbiterianas de toda a escola até a 5ª série, quando uma prima nossa veio integrar nosso grupo da diferença. As freiras me contavam histórias estralaçadas sobre Lutero e Calvino e, no começo, eu sentia vergonha, mas depois eu descobri que elas mentiam para mim, por conta dessa filiação muito crédula no catolicismo. Às vezes eu entrava na fila e tomava a hóstia. Os colegas olhavam assustados. Também fazia, quando queria, o sinal da cruz, e olhava com ternura para o rosto da virgem Maria, tão bonita e tão frágil, e de repente, pisando a serpente que havia sob seus delicados pés de forma tão desprecavida (ela nem sequer usava chinelos!), a virgem Maria, que eu adorava e era tão desprezada pelos protestantes.
Foi com o espírito de querer seguir meu grupo que, no fatídico dia em que a professora questionava sobre as eleições, chegada a minha vez, eu agi no impulso da fidelidade partidária aos meus colegas e, ainda com receio de que percebessem minha mentira, respondi que meu pai iria votar em Afif.
Afif, na altura dos meus oito anos, era sonoramente muito mais bonito que Brizola.
O país vivia, pela primeira vez, após anos de censura e imposições de governos, um processo de eleições diretas. Mas as aulas de Estudos Sociais não eram suficientes para desfazer os nós na minha cabeça e me fazer compreender o enorme abismo que separava Brizola dos demais candidatos. Entretanto, eu sabia de algum abismo, pois nunca mencionei esse fato em casa. Do contrário, seria severamente repreendida e censurada pelo meu pai que, se não me contava direito, assim como os livros e os professores, a respeito das fabulações históricas brasileiras, me obrigava, sem romantismo nenhum, a seguir suas intenções partidárias de voto.
Dez anos depois, não saberia precisar ao certo, quando, por que, como, onde, mas o fato que se deu é que eu, ao ingressar na Universidade Federal de Uberlândia, aos 18 anos no curso de Letras, me considerava lulista e tinha afinidade de pensamento com as causas dos movimentos sociais. Lula vinha sempre perdendo as eleições, com ou sem Brizola, mas um sentimento de empatia por uma causa me ligava ao sujeito que, como meu avô materno, perdera um dos dedos da mão enquanto vendia sua força de trabalho.
Na UFU, por quatro anos e meio, segui com uma leitura canônica, cujos principais referenciais teóricos eram sempre Antonio Candido, Alfredo Bosi, Afrânio Coutinho, Schwartz. As aulas de Teoria Literária movimentavam meus conhecimentos sobre o mundo de forma que eu supunha muito inteligente. Falavam do indivíduo e de sua precariedade, mas não pretendiam falar ou saber da precariedade coletiva de tantos sujeitos. As análises textuais morriam nessa aresta, salvo nos raros momentos em que um de nós ousava abrir um parêntese rápido para os dados biográficos do autor. Nessa época, eu era monitora de Língua Inglesa do meu curso, mais ajudando nas tarefas dos alunos do que ensinando, como eu achava que sabia fazer. Uma dessas tarefas muito me marcou: a leitura de um Robinson Crusoé em inglês, feita com uma aluna, durante dias, que mostrava a solidão do homem ao lado do nativo, Sexta-Feira, assinalando, no romance, o prolongamento da vida além de um certo limite. O desfecho colonialista me chamou menos a atenção do que a idéia de longa solidão que Crusoé tivera de enfrentar. Devia ser assim na maior parte dos lugares – o homem precário sobrevivendo em meio a inventividades e armengues –, mas a localização da "suíça brasileira" em que eu me encontrava me impedia de ver além dos textos.
Pelos jornais, muito assunto havia passado: as poupanças congeladas por Collor; os "caras-pintadas" teriam contribuído no feito do impeachment; a queima do arquivo PC Farias e sua namorada; a eleição do outro Fernando, que teria instituído o Plano Real, garantindo aos brasileiros o poder de consumo imediato e um certo controle inflacionário; a privatização de várias empresas nacionais; e o que restava em mim de todas essas histórias, era uma espécie de medo diante da possibilidade de se privatizar o ensino universitário, como propunham as lendas feagaceanas. Percebia que, com as privatizações, se a máquina estatal se desafogara de tantos prejuízos, o consumidor de telefone e energia elétrica pagava o embuste. Os pobres iam cada vez mais pobres. O que eu via e sentia era angústia de ver minha mãe e meus professores há anos sem reajuste salarial, e a constante iminência da greve de funcionários públicos se dava sob o risco de perderem o emprego. Dentro da sala de aula, o texto corria mais ou menos leve. Talvez essas questões me angustiassem tanto pelo fato de eu ser filha de inspetora escolar, por ter firmado amizade com professores mais politizados e que levantavam sempre essas questões em nossas conversas. Em contrapartida, a UFU, Uberlândia, o Triângulo Mineiro, minha cidade Araguari, pareciam um local à parte em meio a tanta desigualdade no resto do país, de onde não se viam favelas (o máximo que se teria perto disso seriam os bairros populares) e pedintes pelas ruas.
Ao final do curso, o cansaço se apoderaria de mim pelas tantas viagens feitas entre minha cidade e a Universidade, e a nos ligar, somente um imenso rio que hoje não existe mais em sua forma de correnteza.
Foi, então, em 2004, que eu viajaria para ainda mais longe. À procura de continuidade nos meus estudos, eu estava ansiosa por algo diferente, e foi justamente o que encontrei quando fui aprovada no curso de mestrado da Universidade Federal da Bahia. Falava-se muito de Foucault, Derrida, Deleuze, Bakhtin, Compagnon, Kristeva, Silviano, Barthes, com naturalidade invejável. Como estrangeira, eu só fiz espiar de longe e tentar correr atrás do prejuízo. As contraposições necessárias com outros focos de visão, o mundo, o mundo estava, enfim, presente na sala de aula de forma visceral. A liberdade era essa coisa assustadora (às vezes mais perigosa que a prisão) e eu queria pagar o preço para ter esse monstrengo ao meu redor.
Eu era outra e o Brasil também já não era o mesmo. Lula havia ganho pela primeira vez as eleições e um novo ar soprava para os brasileiros. Um ex-sindicalista no poder representava o incomensurável das possibilidades contemporâneas. Pela televisão, o apresentador Willian Bonner apontava com certo desdém o novo presidente que chorava a rodo em qualquer situação comovente de Brasil. Foi censurado e, hoje, não se vê mais as lágrimas do presidente na TV.
A minha passagem para o doutorado veio no desenfreado processo de ligar o fim de um curso ao início do outro.
O que posso dizer é que as questões sobre os lugares de fala já não se fazem mais tão pesadas quanto antigamente. Sei de outros mundos, possibilitados pelo viés multiculturalista, pelo trânsito efetivo em que me quis exótica, pelo olhar excitado sobre quem passa, pelas diferenças no país a se acentuarem cotidianamente. Aprendi, contudo, que isso, antes de ser teoria, é um exercício prático.
Dezenove anos se passaram depois de eu ter dado o voto do meu pai para Afif Domingos.
Acredito que as transformações são lentas e as respostas históricas. O Brasil vive mudanças graduais e a performance de esquerda enquanto situação surpreende e prova que também é desenvolvimentista, uma vez que muitos achavam que não poderia ser e tinham medo de que o país estagnasse.
O texto invadiu a vida, para o bem e para o mal. Na medida em que eu me queixava de ficar nas margens das palavras que não me apresentavam o mundo, tal como parecia haver nos noticiários da TV, também desejava que os projetos sociais resolvessem o problema milenar que há entre oprimidos e opressores. Ou que fizessem, por exemplo, que a riqueza do Triângulo Mineiro vazasse para outras partes do Brasil. Mas, nestes cinco anos em que estou na Bahia, o que vi foi o impulso contrário a cada vez que retorno a minha terra. Os "flanelinhas" guardadores de carro agora também existem por lá e meninos muito pequenos tomam os sinais de trânsito em Uberlândia em movimentos acrobáticos. Tudo isso era o trivial na Bahia, desde que vim para cá. E meu olhar tenta, tanto no sul quanto nesse norte, apreender neles, como em Robinson Crusoé, o que seria esse prolongamento da vida além do limite.
Na sala de aula, procuro refletir com meus alunos, textos escritos ou não, que passeiem e toquem em questões políticas e em deslocamentos permanentes.
Acredito, como Caetano Veloso, que o Brasil vai dar certo, que já está dando certo, porque queremos e acreditamos nele. Acredito também que esse coro de vozes tende a aumentar. Por uma razão ou por outra, essa afinidade com os dilemas sociais que foi crescendo dentro de mim, se declarou às avessas naquela fatídica sala de aula, na escola das freiras, no ano de 1989. Equivocadamente, eu seguia o grupo, que não devia saber ao certo para onde estava indo. Mas o meu desejo de me auto-reconhecer como massa já se despontava para vir a ser aquilo que hoje chamamos, pertinentemente, de multidão.

2 comments:

Anonymous said...

Ana Lígia,

Venho sempre por cá acompanhar seus textos, de que gosto muito - uns mais, outros menos, mas sempre os aprecio. E hoje, quando cheguei, deparando-me de início com tão delongadas palavras, o texto era enorme, dois sentimentos de súbito me capturaram: primeiro, o do interesse pela prosa (ainda que os seus versos também me motivem leitura); o segundo, vontade mesmo de compartilhar de um seu resgate, porque, correndo inicialmente os olhos pelo texto, vi nele alguma referência à UFU, de cujas aulas literárias (que à época - a mesma que a sua, inclusive - me deslumbravam pelo desvelar de enredos protagonizando o sofrimento humano - individual - e pelo estorpor de regrada teoria sobre estes mesmos "universos literários"), enfim, também fui "sectária" destes debates todos.

Como você, assistia compenetrada às aulas com aquela gigante em teoria literária, de quem depois me tornei amiga e, mais depois ainda, acho que acabei cultivando uma inimizade "mea culpa". Eu destrinçava os enredos imaginários e não sabia ainda como ser solidária a eles, no limite explosivo de questionamentos que sequer de longe eu, nós éramos incentivadas a percorrer. Lia Flaubert, compadecida do desespero da Emma, mas ignorava que a mesquinhez contra a qual ela lutou (não sei ainda se bravamente) circunscrevia algo além de sua insatisfação afetiva. Era mais, sempre foi mais nestes grandes romances que líamos, não é mesmo?

Veja que curioso: apontaram-me sempre como preciosa possibilidade de me tornar grande crítica literária (com pé na Unicamp, USP, UFMG, talvez), a estudar, continuar estudando o Candido, o Schwarz, e este mesmo compêndio de críticos de que o curso de Letras da UFU tanto se enaltece. Precisei desistir de tudo, de um mestrado em vias de defesa no tão almejado IEL da Unicamp, precisei sair fora de Uberlândia com a intenção - muito semelhante à sua - de entender melhor uma inquietação que àquela época apenas titilava sem espaço para provocar algum tipo de tempestade à vista. Disso e de enfrentar uma realidade às avessas (não a dos Raskolnikovs - que sempre me inquietaram, mesmo sem eu ter a presteza de reconhecer-lhes na imensidão da miséria coletiva que anunciavam -, mas a inquietação d'além palco teórico), disso e de outras tantas coisas eu precisei para formular melhor a própria realidade ficcional que eu então apenas pressentia.

Resultado: saí fora da teoria literária, que me angustiava, e fui dar noutra universidade, sem o prestígio da Unicamp, uma facul fora do eixo, eu diria. Fui estudar história! Impossível ler o desenredo do Raskolnikov, da Emma, das personas fictícias de um Dickens ou Balzac, sem compreender a engrenagem capitalista, imperialista, sobretudo. Estudei, venho estudando o mesmo objeto: um cafeicultor filho da puta, que financiou a fábula modernista de São Paulo (quando tantas outras eram mais inovadoras, por assim dizer, Brasil afora), pretendendo renovar o domínio direto de sua classe burguesa, amedrontada com a iminência da indústria (e olha que nos frementes anos 20 as greves trabalhistas já abarrotavam fábricas e fábricas, e as lavouras cafeeiras, claro)... E no curso de Letras, quando fui ter com este objeto de pesquisa, a minha preceptora admirava, me comunicando, o seu glorioso mecenato. Este que, para Gramsci, não passou de uma tentativa de reposição da hegemonia paulista em vias de perder força ou sumir do mapa...

Enfim, querida: agradeço-lhe pelo belo texto, em tudo coerente e sensível. Cabeça explode mesmo quando a gente põe nela dinamite. A minha hoje quase! Bom demais ler de você que agora algo muito maior se avizinha, como sempre se avizinhou sem a gente se dar conta. Na minha Solaris, onde passei bom tempo a ralar como todos que o fazem cotidianamente, fui aprendendo a reconstruir isso. E hoje, quando volto a Uberlândia ou a Araguari, vejo também coisas com coisas tão diferentes: realidade palpável, que comprime, consome e em parte nos irrealiza. Os meus alunos, que ano passado compraram briga comigo em favor de leituras outras, a questionarem o inquestionável, vão agora construindo seus telhados... de desarmonia boa. Acho, como você, que vale a pena.

Te deixo um abraço enorme, de admiração e respeito, embora muitas vezes tenhamos divergido, e muito, nos tempos de outrora. E te convido (se puder, se quiser, ou não!) a ir dar nas melindices que agora venho escrevendo num blog recente, sem pretensão alguma, nem mesmo a de ser lida. Só uma necessidade de vomitar coelhos... O endereço deixo cá: www.terceirapersonne.blogspot.com.

Desculpo-me de antemão pela delonga e pelo desaviso.
Até breve e um super parabéns pelo texto,
Melinda.

Bonsdegarfo said...

Faço coro. Eu também acredito. belo texto!
beijo