Thursday, December 06, 2007

Mamãe,
Agora estou bem. Mas a senhora nem imagina o que foi que me aconteceu.

Hoje, pela manhã, fui à padaria comprar pão e leite, quando de repente desmaiei em pleno Largo 2 de julho. Quando abri os olhos, uma senhora e mais dois rapazes me socorriam, me ajudavam a levantar e perguntavam se eu estava me sentindo bem. Eu estava confusa e envergonhada, não, não me sentia nada bem, pedia desculpas trocadas, falava bobagens. Eu estava em jejum. Quantas vezes havia saído de casa em jejum para tomar café só mais tarde - quando a fome apertasse - ou na espera de alguma amiga do trabalho, para partilhar novidades velhas, casos antigos de amor...

Antes que a senhora me pergunte, não estava entorpecida, bêbada, nem nervosa. A noite anterior havia sido calma e de um bom filme de Lars Von Trier no cinema. Fui dormir alimentada, pois Ingrid, que me acompanhava, aceitou o convite para um mac donald’s.

Eu ando muito rápido pelas ruas. Geralmente é assim. Eu tenho pressa nem sei de que.

Cheguei rápido à padaria hoje pela manhã. Era só pão, iogurte e leite, pá, púm, pagar e sair, voltar pra casa, tomar café com a amiga. Mas no meio, o entre-tempo. Me levantei o mais rápido que pude e descobri a situação em segundos. Eu havia perdido o controle sobre meu corpo. A pressão foi à zero, deu teto preto, imagens desfocadas, tipo contraste super alterado em programa de photoshop.
Me lembro de ter pagado a conta e sentir meu corpo estranho, indo embora, mas eu assinava a conta, então achei que ainda tinha o controle-remoto do meu corpo. Pedi um copo d’água – mas nessa hora, meus ouvidos não ouviam minha voz. Não tem copo d’água, moça. Foram as últimas palavras que ouvi. Me lembrei que deveria sentar, saí correndo – correndo! – da padaria, em busca de paredes onde pudesse me escorar para sentar, suave, como deveria ser, para não machucar nada em mim. Nada, nada, nem paredes. Só eu caindo no chão de um buraco negro que parecia me abocanhar, me levar para isso com minhas próprias pernas e eu à zero. Quantos milésimos de segundos se passaram?

Era Vera o nome dela. A senhora que me ajudava. Ela me olhava espantada, via onde eu havia me machucado, me dizia que eu estava pálida, que eu havia batido a cabeça no pára-choque de um carro quando me viu, que eu era tão magrinha, havia tomado café?, gosta de café?, vou mandar buscar um café. E trouxeram. Eu tomei e me senti muito melhor, meu corpo dizia sim.
Os machucados começaram a arder. Havia esfolado o joelho, o ombro, tudo em cima de cicatrizes que já estavam me abandonando. Lembro que uma vez caí de bicicleta enquanto tentava pegar uma ‘bêra’ em um trator. Foi horrível esfolar no asfalto, ainda segurando algo do trator e do guidom da bicicleta. Uma semana depois, estava indo a um orelhão e, do nada, levei um tombo ralando ainda mais os meus joelhos.

Em casa, Vera foi comigo até a porta. Fez questão de entrar, de me deixar a salvo de mim mesma. Ingrid me olhava com olhos assustados. Como tudo isso poderia ter acontecido no rápido caminho até a padaria?
Mais tarde, fomos ao cinema novamente. Um filme lindo, que não cabe aqui, nesta história de descontrole. A massai branca. Quando voltei pra casa, sozinha, o assombro do acontecimento matutino. E se eu me machucasse sério? E se nunca mais voltasse para casa e deixasse Ingrid trancada por horas, sem saber de nada e eu sendo levada para um hospital clandestino, sem saber quem eu era, onde estava.
E se eu perdesse a memória, se eu não soubesse mais quem sou.
Já não sei mesmo.
Se fosse assim, eu saberia mais? Eu teria mais cuidado, mais zelo comigo mesma? Sairia de casa somente após o café que seria de lei?
E como fazem os mais pobres? Como não cair sempre pelas ruas, esbarrar em busca de paredes invisíveis, pedir ajuda sem dar conta que é tão preciso o outro. E é preciso que esse outro seja bom, tão bom, que nos leve para casa pela mão, carregando nossas compras, sem pedir nada em troca.
Eu tentei pagar o café que me deram. Não deixaram. Aquelas notas e moedas não eram válidas para aquele sentimento que sentiam em ajudar, em poder ajudar. E se eu fosse uma puta bêbada, aidética, sifilítica?
Nada dizia que eu não era.
Além de tudo, mon amour, eu vivia na avenida sete.
Isso pode ser lido como um status de gente boêmia e deselegante. Que bom, Vera, que você, com nome de uma tia que eu não vejo há muito tempo, me ajudou, sem saber quem eu era (porque a resposta poderia ser nula), por onde andava e com quem.
Me olhava com olhos de mãe. E disse que sua filha outro dia havia desmaiado dentro de um ônibus e que a levaram para casa. Mãos estranhas.
Eu era o pagamento de uma gentileza ao deus dará.
Mas eu voltei para aquilo que eu nem sei que sou. O controle-remoto estamirado encontra-se novamente em meu suposto poder.
Mas o mais estranho de tudo são as feridas.
Mesmo quando elas não estão, eu sempre as sinto arder.

5 comments:

Anonymous said...

oh, ana, tão linda a sua escrita, tão dolorosa às vezes a vida. cuide-se bem, e não desapareça muito. beijos, com amor, mô

Anonymous said...

mininaaaaa ! coisa doida !

I said...

ana! que texto você fez...

quero dizer que essa tua "pressa não sei de quê" é uma das coisas que vc me ensina e que eu te sou muito muito grata por poder acompanhar em alguns momentos bons.

Anonymous said...

FOI O MC DONALDS Q VC COMEU. PROCESSE! E SE CUIDE GAROTA.

Anonymous said...

o texto tem pressa e tem uma dor, né? Tá lindo, doído e doido :) Vá lá.
Bj